Veerle Devos passou os últimos dois anos a viajar entre Bruxelas e Lisboa, até que, no início de Março, decidiu alugar uma casa em Alfama, um dos bairros mais típicos da capital portuguesa. “Depois de ter vivido quase sete anos em Bruxelas, queria encontrar uma cidade com uma melhor qualidade de vida”, explica a jornalista belga.
Transformada em centro político e administrativo da União Europeia, a capital belga é “muito interessante” do ponto de vista jornalístico, mas Veerle Devos percebeu que representa também “um enorme desafio diário para cada habitante”. “A meu ver, esta cidade provoca muito stress desnecessário”, salienta.
Veerle refere que apenas 32.1% dos habitantes de Bruxelas são “Belgo-belgas”, ou seja, filhos de progenitores de nacionalidade belga. “Há 170 nacionalidades diferentes numa cidade com apenas 1.1 milhões de habitantes, os mais pobres partilham a mesma cidade com os mais ricos. Bruxelas, como capital europeia, atrai todo o tipo de pessoas (desde as talentosas às criminosas).”
Daí os “problemas crescentes” relacionados com a habitação, a segurança, o desemprego, os problemas sociais entre os diferentes grupos étnicos. “Se o governo tivesse um plano para lidar com tudo isso, a afluência de pessoas seria uma mais-valia para Bruxelas. Mas o governo está mais preocupado com as tensões comunitárias entre flamengos [de origem germânica, habitam a metade Norte da Bélgica] e valões [de origem cela, habitam a metade Sul]”, considera.
Foi fora de portas que a jornalista começou à procura de um sítio melhor para viver. “Esse lugar é Lisboa, um dos segredos mais bem guardados da Europa”, confidencia. Embora a proximidade com o oceano Atlântico e a “incrível quantidade de horas de sol” tivessem sustentado a sua decisão, Veerle encontrou outros argumentos de peso.
“É a mistura de qualidades que me faz querer estar aqui: o respeito e a ligação com a natureza, pessoas amigáveis, belas cidades com calçada Portuguesa, azulejos e edifícios históricos em todo o lado, baixa criminalidade, uma excitante vida nocturna, imigrantes vindos de África, Ásia e Brasil que dão à cidade um toque extra exótico, um sentimento de pertença e solidariedade entre as pessoas, fortes tradições ainda muito vivas (como as festividades do Santo António, por exemplo), uma cultura musical influenciada pela tradição e pelos movimentos internacionais, excelente qualidade dos alimentos e um bom vinho numa tasca humilde, etc.”
Uma escolha fundamentada
Detentora da empresa Our – Office for Urban Reporting, a jornalista dedica-se à investigação sobre as cidades e as suas comunidades. A informação recolhida é, posteriormente, compilada em ‘magbooks’ (publicações com aparência de revista e qualidade de um livro).
“Recentemente, terminámos a investigação sobre as comunidades congolesas e turcas em Bruxelas, mas a nossa primeira escolha foi a comunidade portuguesa, uma vez que nunca tinha sido investigada”, conta.
No decorrer do trabalho que deu origem ao “Lusobelgae” (http://officeforurbanreporting.eu/our-works/independent-publications/), a jornalista apaixonou-se definitivamente “por todas as coisas portuguesas: a cultura, as pessoas, a comida, a história, a saudade, a natureza”.
“Viajei muito durante os últimos 20 anos. Istambul e Berlim foram outras possibilidades para me estabelecer”, confessa. O mais difícil em território nacional tem sido lidar com a burocracia e “a sua inflexibilidade”.
Aos 40 anos, Veerle investe o seu tempo na aprendizagem da língua de Camões e produz conteúdos jornalísticos para revistas estrangeiras, pelo que não se vê confrontada com os constrangimentos do mercado de trabalho português.
A par dessa actividade profissional, quer dar passos curtos, mas seguros, na criação de um serviço turístico diferenciado: “as pessoas estão fartas da abordagem típica. Através do site www.lisbonstories.eu, o turista pode contratar-me para o levar aos meus sítios favoritos na cidade”.
A escolha do percurso é consentânea com o seu interesse como jornalista e investigadora numa cidade que “está em transição”. “Como capital está a mudar através dos seus imigrantes, por causa da crise, influenciada pelo seu passado”, frisa.
A atractividade das idiossincrasias
Em Portugal, Veerle ficou surpreendida com a mentalidade e o espírito empreendedor. “Os portugueses dependem de si mesmos e não do seu governo. Sabem como superar as dificuldades da vida: com a ajuda das suas famílias, através da solidariedade, cortando nos extras, cultivando os seus próprios vegetais. Sabem como lidar com a crise de uma forma adulta.”
A jornalista reconhece que “as coisas vão mudar e a vida tornar-se-á mais difícil, por isso as pessoas vão sofrer”. “Ainda mais lojas e restaurantes vão fechar, muitas pessoas talentosas vão deixar o país, as indústrias culturais terão problemas para produzir, as pessoas serão obrigadas a entregar o seu trabalho ainda mais barato do que agora para que Portugal possa tornar-se a China da Europa.”
Por outro lado, Veerle destaca que a crise abre também novas oportunidades: “talvez esta difícil situação desafie os portugueses a tornarem-se mais competentes, auto-confiantes e pró-activos a apresentar e vender a sua qualidade para o mundo”.
Quanto à possibilidade de permanecer em Portugal definitivamente, a jornalista prefere alguma cautela: “ainda não sei, vamos ver o que o futuro traz”. Para já, a única certeza é que Lisboa é a sua “wonderland” [o país das maravilha], “principalmente por causa da sua autenticidade – todo o resto resulta disso”.
Patrícia Posse